Trabalho escravo: a difícil jornada depois do resgate


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
06/02/2023



Políticas públicas ainda esbarram em falta de acompanhamento e estrutura para proteger e reinserir trabalhador submetido à exploração


Com informações da Folha de São Paulo 


A difícil jornada de trabalhadoras e trabalhadores depois de regatados do trabalho análogo ao escravo foi tratada em matéria da Folha de São Paulo esta semana. O jornal ouviu o Auditor-Fiscal do Trabalho Lucas Reis e Procuradores do Trabalho, que entendem ser necessário melhorar as políticas públicas para proteger e reinserir trabalhadores submetidos à exploração.


O trabalhado doméstico foi abordado como exemplo do sofrimento desses trabalhadores, por conta dos “laços” afetivos da vítima com seu algoz.


Desde 1995, quando o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) foi criado, 60.251 trabalhadores foram encontrados em todo o Brasil em situações análogas à escravidão, 46.779 em serviços rurais. Hoje os homens são 90% dos resgatados. Em 2018, eram 95%.


Desde 2017, o sistema de resgates - que inclui os Auditores-Fiscais do Trabalho, responsáveis pela coordenação do GEFM, os ministérios Público do Trabalho e Público Federal, a Defensoria Pública e as polícias Rodoviária Federal (PRF) e Federal (PF) - passou a registrar também os casos de trabalho escravo doméstico, um dos mais difíceis de serem fiscalizados por esbarrar no direito constitucional da inviolabilidade de domicílio.


Enquanto os Auditores-Fiscais do Trabalho podem entrar a qualquer momento em empresas ou propriedades rurais, o mesmo não vale para as residências. É necessário ter autorização judicial e, para pedi-la, indício de crime.


Herança colonial alimentada pela pobreza


Para o Auditor-Fiscal do Trabalho Lucas Reis, o trabalho escravo contemporâneo é uma espécie de continuação da escravidão colonial. "A abolição ocorreu apenas legalmente e é muito recente. O Brasil ainda não reparou 380 anos de escravidão. Há muitos resquícios desse período e a escravidão é uma delas", afirma.


A pobreza e a miséria são dois combustíveis para a exploração de trabalhadores em níveis considerados degradantes. Há um tipo de retroalimentação: na miséria, os trabalhadores ficam mais vulneráveis a aceitar trabalhos exaustivos que garantam o mínimo para a sobrevivência, e em condições sempre ruins, esses trabalhadores nunca deixam a miséria. "É um terreno muito fértil. Às vezes a pessoa precisa se submeter para poder comer, sobreviver, morar."


Pós-resgate é principal gargalo da política pública


A política pública de enfrentamento ao trabalho escravo, prevista em um plano nacional, fala em três eixos de atuação, que são a repressão, a prevenção e o atendimento à vítima. Para a psicóloga social Yasmim França, o Brasil avançou muito no eixo repressivo, mas ainda caminha a passos lentos nos outros dois.


O trabalho no pós-resgate é igualmente importante, especialmente nos casos de trabalho doméstico. "A pessoa vivia naquela casa e ela se desterritorializou. Há então a necessidade de estimular a autonomia, expandir esse território", diz.


Ela coordena, no Rio de Janeiro, o projeto Ação Integrada - iniciativa de Auditores-Fiscais do Trabalho - desenvolvido com a Cáritas-RJ, organização que atua no processo de acolhimento e reinserção de pessoas resgatadas e que acompanha atualmente mais de 20 famílias em processo de readaptação.


Para os casos de trabalho doméstico, ela faz um paralelo às situações de violência doméstica. "Há uma mistura de afetos, de relações íntimas. Como na violência doméstica, há a redução da rede de apoio, que fica restrita ao violentador. Por isso, em todas essas violências há importância dessa rede externa à casa, ampliada."


As semelhanças com a violência doméstica conjugal vão além.  Lys Sobral, do MP do Trabalho, diz que os procuradores têm pedido separação de corpos (liminar para que a pessoa seja retirada de casa imediatamente) com base na Lei Maria da Penha. "Há uma fragmentação na estrutura emocional dessas mulheres, é uma relação de abuso. A pessoa é leal e se sente mal de falar mal daquela família”, explica. Quando são mulheres idosas, elas com frequência acabam indo para abrigos públicos, onde começam a reconstruir laços comunitários. 


Na avaliação de Lys Sobral, o pós-resgate ainda é um dos gargalos da política pública, hoje resumida à garantia de três parcelas do seguro-desemprego. Para as mulheres em situação de escravidão doméstica, a legislação desse tipo de trabalho limita o benefício a um teto no valor de um salário mínimo.


Os procuradores têm tentado, caso a caso, garantir  indenizações por danos morais a essas trabalhadoras."Para que seja ressarcido aquele dano gravíssimo, mas também dar condições materiais da pessoa seguir adiante", afirma. "Cada vez mais se discute a necessidade de elevação do patamar dessas indenizações."


Nos casos de trabalho escravo doméstico, a indenização é, com frequência, a única possibilidade daquela mulher tomar algum controle da própria vida, pois é comum que percam outros laços sociais e familiares. Em casos que se tornaram públicos, procuradores brigaram na Justiça por outras soluções.


A definição de "reduzir alguém à condição análoga à de escravo" vem do artigo 149 do Código Penal. O texto legal diz que isso pode acontecer tanto no trabalho forçado quanto em jornadas exaustivas, seja porque o trabalhador foi sujeito a condições degradantes ou porque teve sua locomoção restringida pelo empregador ou preposto.


A pena prevista é de dois a oito anos de reclusão e multa. No âmbito trabalhista, as ações costumam pedir indenização por danos morais individuais, por danos coletivos e o recolhimento de todas as verbas trabalhistas.


 

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