Auditores-Fiscais do Trabalho entrevistaram mais de 100 entregadores e analisaram documentos, chegando à conclusão de que eles não são independentes e deveriam ter a Carteira de Trabalho assinada, mesmo levando em consideração todas as mudanças trazidas pela reforma trabalhista
Por Nilza Murari, com informações da SRT/SP
Na última semana repercutiu na imprensa uma fiscalização realizada em São Paulo na empresa Rappi, que se define como uma intermediadora de entregas. A minuciosa investigação foi realizada pelos Auditores-Fiscais do Trabalho Rafael Augusto Vido da Silva e Rafael Brisque Neiva, do grupo de combate à informalidade e à fraude nas relações de emprego da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo – SRT/SP. Transcorreu de abril a dezembro de 2020, concluindo que os entregadores não são trabalhadores autônomos. Mesmo diante das profundas alterações na legislação promovidas pela reforma trabalhista, estão presentes todos os elementos que caracterizam a subordinação e a relação de emprego gerida pela CLT. Os cerca de sete mil entregadores que prestam serviços para a Rappi, somente na cidade de São Paulo, deveriam ter a Carteira de Trabalho assinada.
Na prática, os motociclistas e ciclistas que trabalham para o aplicativo não têm autonomia, não definem o valor do serviço, se sujeitam a um contrato com regras unilaterais e podem ser punidos/suspensos quando a Rappi entender que as regras não foram cumpridas.
Para compreender a fundo a relação entre a empresa e os entregadores, desde a adesão ao aplicativo, passando pela retirada e entrega dos produtos, até o recebimento pelos serviços prestados, os Auditores-Fiscais do Trabalho entrevistaram mais de 100 entregadores. A maior parte não quis se identificar, temendo represálias da Rappi.
A grande maioria é de homens jovens, muitos deles em situação econômica vulnerável, que têm no serviço de entregas sua única fonte de renda. Em geral, trabalham muitas horas por dia, e praticamente todos os dias da semana para ter algum ganho significativo. Como os motoristas da Uber, são responsáveis pela manutenção de suas motocicletas e bicicletas, arcam com todos os custos, inclusive dos acidentes, que são um risco sempre presente. Os que têm bicicletas, na impossibilidade de comprar uma motocicleta, se esforçam para colocar motor, a fim de tornar as entregas mais ágeis.
Os depoimentos apontam sempre para a mesma conclusão, de que os entregadores não são autônomos, ao contrário, dependem do aplicativo para trabalhar. Não é ele quem oferece os seus serviços; é a Rappi. Além disso, não é o entregador quem determina o valor do serviço; novamente, é a Rappi. O consumidor não conhece o entregador; conhece e contrata a Rappi. A Rappi, por sua vez, depende dos entregadores para que seu negócio funcione. A única autonomia, na teoria, seria poder recusar entregas, mas, na prática, se o fizer, o entregador é suspenso. "É mais cruel do que o trabalho intermitente previsto na CLT, pós reforma trabalhista, pelo qual o trabalhador é empregado, tem seus direitos, e pode recursar uma demanda sem receber punição por isso, sem que a relação de emprego seja desconfigurada", diz Rafael Neiva.
A Rappi não paga diretamente aos entregadores. O pagamento é intermediado pela empresa SmartMEI, com a qual mantém parceria. A Rappi fornece os dados dos entregadores à SmartMEI, que cria uma conta digital para o pagamento das entregas e/ou fretes. A adesão é obrigatória. Não há outra forma de receber pelos serviços prestados. O pagamento é feito uma vez por mês, por transferência gratuita, ou por semana, mediante o pagamento de taxas, o que corrói os ganhos.
As duas empresas – Rappi e SmarMEI – não apresentaram os documentos solicitados na Notificação de Apresentação de Documentos – NAD e foram, por esse motivo, autuadas por embaraço à fiscalização. Deixaram de apresentar, por exemplo, a relação de entregadores cadastrados, o histórico de transferência de valores e o contrato de parceria entre as empresas.
A não apresentação do rol de entregadores cadastrados, por parte da Rappi, foi fundamentada na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD que, na visão da empresa, impediria o fornecimento dos dados. Segundo os Auditores-Fiscais do Trabalho, a LGPD não estava vigente à época e, ainda que estivesse, neste caso, a Rappi teria que cumprir a determinação da Fiscalização do Trabalho. Ficou claro que não fornecer os dados foi uma estratégia para dificultar o desenvolvimento da ação fiscal.
Rafael Neiva frisa que, a despeito do que reza o contrato social da empresa e sua classificação de atividade econômica, a Rappi “é uma empresa de transporte e entregas rápidas. Essa é a atividade principal e que dá suporte ao seu modelo de negócio. A atividade de tecnologia é secundária”.
Ele também observa que a fraude praticada desestrutura todo o setor econômico de entregas. “A Rappi estabelece uma concorrência desleal com as empresas de entregas que têm os motociclistas empregados, pagando os direitos trabalhistas. É o dumping social. A Rappi tem custo praticamente zero com a mão de obra ‘autônoma’ e as outras têm custos, não conseguem competir. As empresas e os trabalhadores ficam prejudicados”.
Há ainda outro aspecto. No atual cenário de alto desemprego e vulnerabilidade social, a Rappi tem “um exército de trabalhadores à disposição, gera competição entre trabalhadores e permite à empresa uma grande exploração, pagando salários baixos e sonegando direitos. É um contexto socioeconômico do qual a empresa se aproveita para explorar a mão de obra, facilmente substituível”, diz o Auditor-Fiscal do Trabalho Rafael Neiva.
O histórico da fiscalização de oito meses, realizada na sede da Rappi e em locais de concentração de entregadores à espera de um chamado – ruas, praças, calçadas –, é detalhado. Comprova, a cada linha, que a relação é de emprego, de subordinação. Estariam, portanto, prejudicados por não receberem seus direitos trabalhistas como FGTS e Previdência Social, férias, descanso semanal remunerado, entre outros. Há, no dizer dos Auditores-Fiscais, empenho na redução do custo de mão de obra, por um lado, e, por outro, o desenvolvimento de sistemas de controle e fiscalização do trabalho à distância. Tudo isso, sem vínculo trabalhista. É a precarização do trabalho dos entregadores gerando altos lucros para uma empresa que transfere todos os riscos de seu modelo de negócio para o trabalhador. A Rappi não é a única; várias outras usam a mesma metodologia.
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