por Lourdes Marinho com informações do MPF
Edição: Andrea Bochi
O SINAIT comunga do entendimento do PGR. Destaca que a maior parte dos casos de trabalho escravo no país acontece por conta de violações das condições decentes de trabalho, ou seja, por jornada exaustiva ou condições degradantes que aviltam a dignidade da pessoa humana
O procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu, em memorial enviado na quinta-feira, 29 de abril, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que a Corte Suprema reconheça a repercussão geral de recurso extraordinário que discute a tipificação do crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal, e os requisitos necessários para comprová-lo. O assunto é tratado no Recurso Extraordinário 1.323.708/PA, de autoria do MPF, contra decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). Segundo Aras, o tema tem grande relevância social e aparece em diversos processos. Por isso, o PGR defende que o recurso extraordinário seja pautado imediatamente no Plenário Virtual do STF, para decisão sobre o tratamento da matéria na sistemática de repercussão geral.
O caso é relativo à decisão do TRF1 em processo contra três réus, acusados de aliciamento de trabalhadores e de redução de pessoas à condição análoga à de escravo. Apenas um deles foi condenado em primeira instância, mas a decisão foi reformada pelo tribunal, que decidiu pela absolvição. O TRF1 considerou que condições como alojamentos precários, situações adversas de moradia, falta de instalações sanitárias e de água potável, consumo e uso de água de rio, ausência de proteção pessoal e endividamento dos trabalhadores não seriam degradantes o suficiente para comprovar o crime de redução à condição análoga à de escravo, e sim situações típicas da realidade brasileira no interior. O MPF recorreu ao Supremo em abril deste ano e, agora, pede repercussão geral para a matéria.
No memorial, Aras lembra que a redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo viola os princípios fundamentais da dignidade humana, da liberdade do trabalho e da redução das desigualdades regionais, previstos na Constituição. Segundo ele, as condições de afronta à dignidade em que muitas vezes são encontrados os trabalhadores rurais vão além de uma mera realidade local. “São caracterizadoras do tipo, que expressamente reconhece como trabalho escravo aquele exercido em condições degradantes, com o fim de elevar o patamar de proteção de direitos ao mínimo compatível com o reconhecimento como pessoa”, explica o PGR.
O SINAIT comunga do entendimento do PGR. Destaca um levantamento feito pelo G1, em janeiro de 2018, que confirmou que a maior parte dos casos de trabalho escravo no país acontece por conta de violações das condições decentes de trabalho (por jornada exaustiva ou condições degradantes). O jornal analisou 33.475 páginas de 315 relatórios de fiscalizações feitas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho nos anos de 2016 e 2017.
Para o SINAIT, esta é a cara da escravidão contemporânea, onde as pessoas são “coisificadas” e aviltadas nos seus direitos fundamentais, notadamente o da dignidade da pessoa humana.
Dívidas impagáveis, ameaças veladas, água dividida com animais, jornadas extenuantes sem descanso, moradias insalubres, falta de equipamentos de proteção e de kits de primeiros socorros. Os relatos de trabalhadores resgatados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, no país reúnem vários elementos que mostram como se configura o trabalho análogo ao de escravo nos dias de hoje.
Para Aras, ampliar a tolerância a situações degradantes é inconstitucional e viola os compromissos assumidos pelo país em tratados internacionais. Ele lembra ainda que o Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a incrementar o combate à escravidão contemporânea, no caso dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. “Decisões que, mesmo reconhecendo as condições inadequadas e degradantes a que submetidos os trabalhadores rurais, deixem de imputar aos responsáveis as consequências jurídicas determinadas pelo Código Penal e pela Constituição Federal, indo de encontro à dignidade das pessoas e à liberdade de trabalho, hão de ser reformadas”, sustenta.
O Recurso Extraordinário do MPF contra decisão do TRF1 cita dados levantados pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mostra que, entre 2008 e 2019, foram denunciados 2.625 réus pelo crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal), mas apenas 111 foram condenados em definitivo pela Justiça. O número corresponde a apenas 4,2% de todos os acusados. Desse total, somente 27 condenados não puderam substituir as penas por sanções restritivas de direitos; “ou seja, apenas 1% dos réus estariam sujeitos a ser presos, se não alcançados pela prescrição da pretensão executória, que é a hipótese mais comum”, afirma, citando o estudo, o PGR.
Os dados sinalizam um quadro de proteção deficiente ao direito fundamental ao trabalho livre e digno. Sendo assim, “revela-se importante que a Suprema Corte se pronuncie acerca dos parâmetros constitucionais de interpretação dos dispositivos incidentes na matéria, a fim de alcançar-se a efetiva proteção dos direitos fundamentais e humanos atingidos pelo trabalho escravo”, conclui o procurador-geral.
“O artigo 1º da Constituição Federal, ao estabelecer como fundamento do Estado brasileiro o respeito ao “princípio da dignidade humana", foi claro quanto à necessidade de se proteger igualmente as pessoas, independentemente do local em que vivem, portanto, em qualquer lugar do País onde se encontrar um trabalhador, que lhe seja garantido o respeito à sua dignidade", destaca o presidente do SINAIT, Bob Machado.
Impunidade gera crimes
O SINAIT ressalta que a impunidade dos infratores e criminosos - constatada no levantamento da UFMG e no caso relativo à decisão do TRF1, questionado no Recurso Extraordinário do MPF- encoraja ameaças e crimes contra agentes do Estado.
Nunca é demais lembrar o caso mundialmente conhecido como Chacina de Unaí, em que foram assassinados três Auditores-Fiscais do Trabalho e um motorista do extinto Ministério do Trabalho, em 28 de janeiro de 2004. Até hoje a categoria luta por justiça, para colocar atrás das grades todos os envolvidos no crime.
Veja aqui uma linha do tempo com mortes, agressões, ameaças e intimidação aos agentes do Estado, entre 2004 e 2020.
Confira aqui a íntegra do memorial do RE 1323708 do MPF.